Foi no tempo da oitava classe, na aula de português.
Eu já tinha lido esse texto dois anos antes mas daquela vez a estória me parecia mais bem contada com detalhes que atrapalhavam um pessoa só de ler ainda em leitura silenciosa - como a camarada professora de português tinha mandado, Era um texto muito conhecido em Luanda: "Nós matamos o Cão-tinhoso".
Eu lembrava-me de tudo: do Ginho, da pressão de ar, da Isaura e das feridas penduradas do Cão-tinhoso. Nunca me esqueci disso: Um cão com feridas penduradas. Os olhos do cão. Os olhos de Isaura. E agora de repente me aparecia tudo ali de novo. Fiquei atrapalhado.
A camarada professora selecionou uns tantos para a leitura integral do texto. Assim queria dizer que íamos ler o texto todo de rajada. Para não demorar muito, ela escolheu os que liam melhor. Nós, os da minha turma da oitava, éramos 52. Eu era o número 51. Embora noutras turmas tentassem arranjar alcunhas para os colegas, aquela era a minha primeira turma onde ninguém tinha escapado de ser alcunhado. E alguns eram nomes de estiga violenta.
Muitos eram nomes de animais: havia o Serpente, o Cabrito, o Pacaça, a Barata-da-Sibéria, a Joana Voa-Voa, a Gazela, e o Jacó, que era eu. Deve ser porque eu mesmo falava muito nessa altura. Havia o É-tê, o Agostinho Neto, a Scubidu e mesmo alguns professores também não escapavam da nossa lista. Por acaso a camarada professora de português era bem porreira e nunca chegamos a lhe alcunhar.
Os outros começaram a ler a parte deles. No início, o texto ainda está naquela parte que na prova perguntam qual é e uma pessoa diz que é só introdução. Os nomes dos personagens, a situação assim no geral, e a maka do cão. Mas depois o texto fica duro: tinham dado ordem a um grupo de miúdos para bondar o cão tinhoso. Os miúdos tinham ficado contentes com essa ordem assim muito adulta, só uma menina chamada Isaura afinal queria dar proteção ao cão. O cão se chamava Cão-tinhoso e tinha feridas penduradas, eu sei que já falei isso, mas eu gosto muito do Cão-tinhoso.
Na sexta classe eu também tinha gostado bué dele e eu sabia que aquele texto era duro de ler. Mas nunca pensei que umas lágrimas pudessem ficar tão pesadas dentro duma pessoa. Se calhar é porque uma pessoa na oitava classe já cresceu um bocadinho mais, a voz já está mais grossa, já ficamos a toda hora a olhar as cuecas das meninas "entaladas na gaveta", queremos beijos na boca mais demorados e na dança do slow ficamos todos agarrados até os pais e os primos das moças virem perguntar se estamos com frio, mesmo assim em Luanda a fazer tanto calor. Se calhar é isso, eu estava mais crescido na maneira de ler o texto, porque comecei a pensar que aquele grupo que lhes mandaram matar o Cão-tinhoso com tiros de pressão de ar, era como o grupo que tinha sido escolhido para ler o texto.
Não quero dar essa responsabilidade na camarada professora de português, mas foi isso que pensei na minha cabeça cheia de pensamentos tristes: se essa professora nos manda ler esse texto outra vez, a Isaura vai chorar bué, o Cão-tinhoso vai sofrer mais uma vez e vão rebolar no chão e rir do Ginho que tem medo de disparar por causa dos olhos do Cão-tinhoso.
O meu pensamento afinal não estava muito longe do que foi acontecendo na minha sala , no tempo da oitava classe, turma dois, na escola Matu Ya Kevela, no ano de mil novecentos e noventa: quando Scubidu leu a segunda parte do texto, os que tinham começado a rir só para estigar os outros, começaram a sentir o peso do texto. As palavras já não eram lidas com rapidez de dizer quem era o mais rápido da turma a despachar um parágrafo. Não. Uma pessoa afinal e de repente tinha medo do próximo parágrafo, escolhia bem a voz de falar a voz dos personagens, olhava para a porta da sala como se alguém fosse disparar uma pressão de ar a qualquer momento. Era assim na oitava classe: ninguém lia o texto do Cão-tinhoso sem ter medo de chegar ao fim. Ninguém admitiu isso, eu sei, ninguém nunca disse, mas bastava estar atento à voz de quem lia e aos olhos de quem escutava.
O céu ficou carregado de nuvens escurecidas. Olhei lá para fora à espera de uma trovoada que trouxesse uma chuva de meia-hora. Mas nada.
Na terceira parte até a camarada professora começou a engolir cuspe seco na sua garganta bonita que ela tinha, os rapazes mexeram os pés com nervoso miudinho, algumas meninas começaram a ficar de olhos molhados. O Olavo avisou: "quem chorar é maricas então" e os rapazes todos ficaram com essa responsabilidade de fazer uma cara como se nada daquilo estivesse a ser lido.
Um silêncio muito estranho invadiu a sala quando o Cabrito se sentou. A camarada professora não disse nada, Ficou a olhar para mim. Respirei fundo.
Levantei-me e toda a turma estava também com os olhos pendurados em mim. Uns tinham se virado para trás para ver bem o minha cara, outros fungavam do nariz tipo constipação de cacimbo. A Aina e a Rafaela que eram muito branquinhas estavam com as bochechas todas vermelhas e os olhos também. O Olavo ameaçou-me com o dedo dele a apontar para mim. Engoli também um cuspe seco porque eu já tinha aprendido há muito tempo a ler um parágrafo rapidamente antes de o ler em voz alta: era aquela parte do texto em que os miúdos já não tem pena do Cão-tinhoso e querem lhe matar a qualquer momento. Mas Ginho não queria. A Isaura não queria.
A camarada professora levantou-se, veio devagar para perto de mim, ficou quietinha. Como se quisesse me dizer alguma coisa com o corpo dela ali tão perto. Aliás, ela já tinha me dito, ao me escolher para ser o último a fechar o texto, e eu estava vaidoso dessa escolha, o último normalmente era o que lia mesmo bem. Mas naquele dia, com aquele texto, ela não sabia que em vez de estar a me premiar, estava a me castigar nessa responsabilidade de falar do Cão-tinhoso sem chorar.
-Camarada professora - interrompi numa dificuldade de falar - Não tocou para a saída?
Ela mandou-me continuar. Voltei ao texto. Um peso me atrapalhava a voz e eu nem podia só fazer uma pausa de olhar as nuvens porque tinha que estar atento aos texto a às lágrimas. Só depois o sino tocou.
Os olhos de Ginho. Os olhos de Isaura. A mira da pressão de ar nos olhos do Cão-tinhoso com as feridas dele penduradas. Os olhos do Olavo. Os olhos da camarada professora nos meu olhos. Os meus olhos nos olhos da Isaura nos olhos do Cão-tinhoso.
Houve um silêncio como se tivessem disparado bué de tiros dentro da sala de aulas. Fechei o livro.
Olhei as nuvens.
Na oitava classe, era proibido chorar na frente de outros meninos.
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